Um sopro

"Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto - e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente." (Clarice Lispector)

Almas com almas

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Tempo de banho

Um bem-te-vi cantou distante. Um sopro matutino fez tremer algumas flores. Uma criança caiu, esfolou o joelho e gritou com saúde de dor. Outras coisas maravilhosas se sucederam, no entanto, elas não pertenciam à Virgínia, bem como também não lhe cabia compreendê-las. Demorou debaixo d’água e seus dedos se enrugaram; passou tempo demais e Virgínia envelheceu.

domingo, 27 de dezembro de 2009

A arte de Virgínia

Mas temo que muito da Arte venha da sublimação; isso seria negar qualquer Inspiração? “Idealizar ou converter em algo espiritual (impulso físico ou carnal); transferir energia da libido para outro objetivo, interesse etc.”, diz o dicionário – e a psicologia. Desde a criatura humanóide àquela dos dias de hoje, a sublimação tem sido a maior e mais importante característica da raça. Porque não há compreensão; porque nem sequer existe a compreensão que o ser Humano procura, isso tem de ser muito bem inventado e esquematizado. Pela Arte? Há tantos outros meios de escapar da falta de destino; mas o artístico ainda é predominante. Eu, que sou uma coisa que não sei. Gato sabe que é gato? Barata sabe que é barata? É disso que falo; e é a partir daí que vêm a arte e a cultura. Alguns artistas exteriorizam meus “Eus” reprimidos; mas é a Arte que faz isso – eis a discórdia: para quem vai o mérito? É preciso entender que seres Humanos artistas são conduzidos por “espíritos artísticos”, e então seus íntimos explodem desvairados; de repente acontece de um deles parecer com um dos meus. E por que eu não os expresso sem depender do outro? Ora, basta que eu não fique quieta, esperando: ou canto, ou pinto, ou danço, ou escrevo; ou escandalizo – porque estapafúrdios são os “Eus” da gente.

A tolice, a incompreensão e a imundície Humana: onde é que o Humano não fede, não é tolo e nem se imbeciliza tentando compreender as coisas? Na Arte.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Virgínia: uma profetisa?

Então um vaticínio é ilusão puro-sangue? Não chegarei à verdade alguma, mas saberei que profecias são frutos duma tremenda ausência do “mundo real”. Escrevo esse livro, por exemplo, vitimada por uma doença mental; não é gracioso o que apuro? E enquanto isso durar, eu não buscarei a cura; talvez nem ao término. Porque eu toquei no nada; não sou profeta e não faço aqui adivinhações – eu faço arte. Meu “elemento tóxico” é o cigarro, e isso, francamente, não conta. De alguma maneira eu recuperei aquela aguçada sensibilidade que permitiu que hoje fôssemos racionais. Tomei como base um pouco de leitura; depois evitei distrações de todo tipo; e então a intuição se me fluiu da fronte feito água mineral. Não tenho nada o que revelar, e talvez as coisas que escrevo sejam bastante óbvias: podem ser óbvias agora que você as terminou de ler, caro leitor; antes, elas dormiam em você, submersas e insondáveis. Isto é prever não o futuro, mas o agora-latente. (O Livro Secreto de Virgínia)

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Vem nascendo Virgínia

Como sei tanto dessa mulher? Não, não de uma mulher comum, claro que não sei dos atos fêmeos – mulher como algo que designei para ser: a vida? A mulher-vida, a mulher-morte, pois eu já sou o Homem – eis a conexão. Sou sensível e não um sexólogo, apenas isso. Mas, de onde, amiúde ainda me perguntes, tirei essa mulher? Ora, de mim mesmo, de meus olhos, de meu peito, de minha bunda, de minhas leituras, de meu cromossomo X, vá saber, eu com minhas fixações metafóricas. Não dá para definir: a força dessa vida não permite limites. Dá para conhecer todos os seus erros possíveis, isso sim. Reconhecer os erros de uma vida é mais útil que rogar a Deus pelos pecadores.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Confissão


Eu já quase deliciosamente morri (mas não vi luz nenhuma, nem vislumbres, nem levitei, nem nada);
Eu nunca comi de uma barata (me dê o ímpeto de que preciso, Deus);
Eu sei que finjo saber das coisas que é pra ninguém ficar sabendo que eu lá sei;
Eu quero o que é meu e que se negam a me dar;
Eu sonho que eu acorde logo.

E você?

Discurso interno de Virgínia

...

_ Que solidão. Parece depois de uma queima de fogos de artifício. Aquela quietude; nem carro, nem vento, nem passarinhos.

_ Você não tem amigos?

_ Não tenho nem a mim mesma, vou lá ter amigos? Eu me achei – e me perdi.

Silêncio.

_ Quero morrer.

_ Ora, mas quem não quer?

_ Sei lá. Meu gato. Nunca o ouvi se queixar. Acho que ele sabe que vai morrer na hora certa.

_ E por que você não se adianta?

_ Meu espírito já está de malas prontas; o corpo é quem reluta. Que faço contra ele? Não sei se devo atentar contra meu próprio corpo; o desejo, não nego. Porque não tenho mais nada para fazer aqui e estou enrodilhada na vida feito um inseto na teia da aranha. Alguém precisa de mim para se alimentar?

_ Sim: o seu gato. Você teria coragem de deixá-lo?

_ Foi ele quem me deixou, ainda não lhe disse?

_ Não. Bem, nesse caso, pois, não haverá uma “aranha” e você terá, infelizmente, de esperar.

_ Presa?

_ Sacuda-se, reflita, pense, grite, cante, blasfeme, faça um escândalo; não tem outro jeito – logo você se esgota e facilita as coisas.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Mostra a tua cara!; digo: desmonste a tua cara!

Falar sobre a vida dos animais me dá gosto; e é tão importante olharmos para eles e sentir saudade. Pois veja se minto: na própria Bíblia está escrito que virá um dia em que “animais e seres humanos conviverão harmonicamente”. Que isso quer dizer? Qual dos dois se afastou do outro?, se é que podemos nos diferenciar deles. Por que essa “promessa”? Então a civilização e o ser Humano são e sempre foram patavina; que, o Humano, serve apenas para esgotar-se na sua “razão e intelectualidade”, ilimitado, fantasista às largas; pois se negamos nossos instintos selvagens, e negamos primatas como ancestrais, e acreditamos que do barro viemos, então não podemos ter outra conduta que não a extremamente intelectual, criticamente existencial, sem sentido, sem alegrias nem tristezas, sem amor, sem qualquer sentimento, porque isso vai acabar um dia, e se formos nos unir aos bichos, não serão eles que mudarão de comportamento; eles não vão falar ou pensar, nós é que seremos, definitivamente e naturalmente, uns silvícolas. Ou apenas não estriparemos mais porcos e galinhas, e viveremos de frutinhas silvestres? Os bichos comem-se uns aos outros. Faremos isso, também? Comeremos uns aos outros porque haverá de se ter “harmonia” entre nós e os bichos? Enquanto isso não acontece, vamos fazer de conta que somos “seres superiores”, criando “aceleradores de partículas” para mostrar aos animais que estamos em vantagem, enquanto eles se satisfazem estúpida e alegremente com “frutinhas silvestres”.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Plumbagina

Sou um escritor sem técnica, ignorante, entusiasmado e aberto; daquele que sempre vai achar uma escada rolante uma coisa assustadora.
Obrigado, bom Deus; nasceu da minha doce burrice o que chamo da sublimidade negra; negra de se acender uma lamparina para iluminar uma pequena circunferência ao meu redor e deixar o resto do breu lá com seus segredos; eu que não tenha medo e vá.

Novo livro:

http://clubedeautores.com.br/book/9601--O_Homem_a_Mulher_e_o_Gato_no_Escuro

Simples como não ser simples pela segurança da simplicidade.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Não sou um escritor

Poeta Cristo que não escreveu nada. Por que não se meteu entre os “doutos” da Literatura – que tinham palavras de sobra – para registrar como foi andar por sobre o mar, acalmar tormentas, multiplicar alimentos, fazer vinho da água, curar, ressuscitar, a sabedoria do futuro, o pressentimento duma morte gloriosa? Porque não tinha perguntas nos olhos; poeta estranho que não “amou a beleza do corpo, nem o esplendor fugaz, nem a claridade da luz, nem as doces melodias das mais diversas canções, nem a fragrância das flores”; poeta que não procurou o que era Deus, mesmo que tivesse observado o sol, a lua e as estrelas, e que tivesse lido “a luz limitada, a melodia arrebatada pelo tempo, o perfume dissipado pelo vento, as iguarias que não diminui o apetite, os abraços que se desfazem” dos “doutos”. Cada parte do corpo do poeta Cristo exclamou em coro: somos a natureza divina dos atributos essenciais; mas o mundo violentamente poetizava, o mundo era violado pelo nanquim, e todos os sensíveis, com medo de suas vidas passageiras, tiveram de escrever. O poeta Cristo sabia também que ia terminar, mas não sofreu de inquietações dessas de se escrever para não morrer. Veja como a Literatura escraviza: perde-se o tempo que vai se perder um dia tentando escrever as maravilhas e os horrores da existência. Poeta nas multidões de gente, e não na multidão de livros. Desertor das palavras mortas na escrita; amante da palavra viva ao léu.

Vítima dos críticos literários e dos escrevinhadores banais, o poeta das ruas Cristo. Imolado pela poesia de enfeitiçados. “Hão de vir anunciar a Justiça dEle; ao povo que há de nascer, contarão que foi Ele que o fez.” – maldita incumbência! Malditos escribas! Os escritores ordinários cheios de tradições e de muitas outras “histórias” para contar não podiam ficar com essa responsabilidade! Que se sabe do poeta Cristo? Como escrever sobre o milagre se isso é coisa da ? Cristo não se meteu com o universo seco e adiposo das palavras porque sua confiança no Divino era airosa e orvalhada; pois nos olhos que iam murchar desse poeta repousou a Verdade - os que se ocuparam de contar sua vida tiveram olhos segados; troçaram da imaginação e da fantasia do poeta Cristo, a mais cândida que já vi em todas as minhas vidas, e nas que viverei.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Bronzes e Cristais

Não sou fraco. Nem covarde. Também não fujo. Mas que há guerra, há. Faz silêncio; então enfrento uma luta espiritual. Sangue, bombas e alarmes estão na boca seca, no pulsar do coração e na alvorada com o berreiro dos pássaros. Guerreiam o espírito e a natureza e eu não tenho nada que ver com o prélio; contudo, sou o campo de batalha deles, e não consigo entender porque essas duas potências escolherem o humano para se confrontarem; o humano, eu, que se guerreei um dia na minha vida foi por fome, fome por comida, e não pelos olhos do semelhante que dessa maldade só fui saber depois; aliás, maldade nunca existiu e por isso tiveram de inventá-la. Meu corpo vibra e estala. Tomba, às vezes. Doer não dói. Os mortos e os feridos são expelidos de meu organismo no suor, nas fezes, na lágrima, na urina; ferem-me e me matam por dentro, o espírito e a natureza, e são a causa do câncer. Deviam se conciliar e me deixar em paz de humano que não sabe que sabe das coisas; eu tenho hora certa para saber. Os grandes pensam que podem me destruir; pensam que sou só mais uma criatura dentre outras milhares por aí, vagando à mercê de neurônios, músculos e cérebro sem compreender nada. Espere lá: humano é casa de Deus, portanto, que me respeitem; apesar de ser Deus quem financia essa guerra. Nem corpo eu tenho – pois não hei de ser fraco, covarde ou fugitivo!

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

"Edadirecnis"

O fato é que a incapacidade para a solidão leva a amizade e ao amor. Se eu alcanço – dolorosamente, pois não é fácil – todos os meus atributos, medos, fantasias, traumas de infância, e os racionalizo, e me ponho à distância deles para isolar o que chamam de “personalidade”, e que eu chamo de “o Eu”, então essas “evasivas afetivas” serão para distração. Não é fácil porque no começo da vida eu não escapo da imitação, da segurança na imagem do outro, e do desejo pelo outro, como se eu não existisse. Sim, não existo ainda na infância: a criança é um espírito livre, sem “identidade”, sem cara, sem sentimentos, sem nada do que os arautos Humanos pregam. Agora falo de Humanidade: e a Humanidade é vencida na solidão. Quem não conseguir dominar a solidão e fazer uso dela para se conhecer e para se negar em todos os aspectos – visto que há um momento em que se deixa de ser criança, que se aprendem coisas e que essas coisas formam as “patologias” – viverá rodeado de amigos e de amantes. Essas pessoas, eu digo, as outras pessoas, enfim, não tem nada de interessante, que não suas vias atribuladas de existência. Sabe-se muito bem que a existência é uma massa de modelar, as figuras que os outros fazem dela podem ser facilmente esmagadas e refeitas, não tem fixidez, são dissolúveis, piso e imprimo nelas a sola de meu sapato, se eu quiser. (Virgínia)

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

O sensato que tem o privilégio da insensatez

Eu quero uma viagem sem relógio no bolso. Louco? Loucos são vocês! Eu quero andar na velocidade da luz que é para explodir, e deixar rastro de estrela que derrete como uma vela. Coitada da vela acesa; assim se consome toda. Consumir-se. A velocidade é quente. Dissolve. E a cera da vela derretida tem cara de: de quê? Se eu explodir a caminho do destino, eu serei cera endurecida, monstruosa, imagem de adoração aos santos. Adoro. Eu sou para a santidade numa vela terminada. Termine com a paz podre e com os fariseus. Termine com isso.

Mulher simples que não sabe o que é o simples

Escreveu para matar o invivido; porque Virgínia tinha milhares de vidas dentro da sua já escura, e essas vidas a incomodavam. Não foi para dar um tiro no escuro, pois é o contrário que acontece: se deixar, o escuro é que nos mata. Então ela arrebatou todos os seus anjos e demônios escrevendo, para que não vazassem e a atrapalhassem que ela não queria ser boa nem má – quis se separar das tantas vidas que a gente traz no sangue, e a vida, dizem, é uma só para se viver. Por isso nunca seria um escritora, não tinha a intenção de ficar conhecida, dar autógrafos e entrevista: era matar ou morrer. Esperta essa mulher – da psicologia ela não ia precisar, nem do sacerdote, muito menos da felicidade. Que alguém fosse ler suas palavras ensanguentadas para chamá-la de escritora e para lhe dar um estilo e talvez algum elogio ou crítica, isso não a interessava; no mais, que o leitor procurasse, antes, descobrir suas mil vidas também; seria um acidente. O livro de Virgínia foi recusado: mas um dia ele aparecerá, porque ela é uma das outras vidas que tenho e que precisa ser vivida de algum jeito; ou matada.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Eu te amo?

E você sabia que o amor pode ser patológico? Bem, na maioria dos casos é. Ah, não me diga que não sabe o que isso significa? Vou ser bem clara: ninguém ama. Você entendeu agora, meu bem? Nós amamos o outro porque somos um abismo de negrumes mentais. Nós sustentamos “amores cobaias”: amigos ou pessoas próximas que usamos e que insistimos num relacionamento por questões meramente biológicas; senão, de estupidez psicológica. Você: pensa que eu te amo? Eu te uso porque não bebo. Sorte que eu escrevo. No entanto, não sou escritora; fumante, eu sou – mas cigarros não saciam, e não me dão falsas garantias que parecem possíveis de se ter, durar, florescer; se são falsas, e passageiras, então é a doce burrice que me faz te amar, que é para sempre poder ficar às margens da verdade e do entendimento, que não quero, ah, eu quero mais é ser criança; que pensem que eu não digo as coisas quando, sim, eu estou dizendo; que o que eu não mostro porque são pobres os elementos disponíveis para explicar minha inteligência é o que eu penso; que eu te ame fora do que o amor permite, palavrinha com o fedor dos doutos. Você sabe que criança é violenta e incomodamente lúcida, não sabe? Por isso amamos nossas cobaias: para não sermos adultos idiotas, que temos de experimentar com a cara e a coragem; mais com a cara, porque uma cara ferida vira arte. Isto é patológico, é incurável, e vá lá linha para pipa. (Virgínia em "O Livro Secreto de Virgínia")

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Pobre ovo frito

“Quem achar a sua vida, a perderá”: é como o tal ovo que existia por ele mesmo sobre a mesa, e que depois de ter sido visto, simplesmente morreu; o ovo morreu porque foi achado. Eu o incomodei na sua preciosa inexistência, na sua morte viva. Assim: eu estou morta, como disse, para destruir com a realidade. Se tomo consciência de mim, por completo, adeus vida – eu me suicido. Pois morto, eu quero a vida, secretamente. E vivo, só posso querer a morte, e com veemência. Deixa-me ser como o ovo que está sobre a mesa sem que ninguém o perceba; sem que ninguém o veja demorado. As pessoas me matam. Por mim, eu existiria sem saber: mas chamam meu nome o tempo todo – ovo?, ovo, responda! (Virgínia)

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Esforço

Se me permitissem escrever de outro modo, por exemplo, “num som harpejado e agreste” e “prescindir de ser discursivo”; mas sei que é perigoso. De qualquer modo, escrever é perigoso, porque mesmo as palavras “escondem outras”, e no nada, a partir do aparentemente vazio, “você arranca sangue”. Não tem como escapar dessa “cilada”; então, eu me entrego à fatalidade de escrever – cuidado para não se manchar com o muco e o sangue desse livro. (A Mulher, O Homem e o Gato no Escuro)

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Guerrear ou cantar?

Ah, mas já passamos por momentos difíceis. Recorda-te da época em que nossas diferenças eram oprimidas por fogo? Hoje não tememos tanto que nos matem a qualquer momento, nem nos recolhemos diante de alertas sonoros. Ainda é um risco haver tanta desigualdade no mundo, a guerra não terminou, disso sabemos. A guerra está no sangue dos Homens – melhor, nas substâncias de seu sangue. Há bilhões de anos um clima belicoso transformou a Terra, surgiram caça e caçador. Ora, onde já se viu? Se a voz não se faz ouvida, vamos explodir em decibéis de sangue. Se não ouviam Virgínia, devia ela empunhar uma espingarda? É que existem os cabeças duras e eles precisam de força, pois são selvagens feito animais endemoniados, porque nem os animais são tão malevolentes. O que sobrevive é a música. A música salva o aflito. A música salvou o outro. É que, se o músico fala na linguagem musical, o ouvinte não se incomoda. A pressão que a música exerce é branda. A voz irrita, a voz diz. A música abraça o ouvinte para matá-lo com ternura. Basta que se escolha a música certa para matar o inimigo e salvar o mundo da guerra.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

A Ilusão da super-mãe

Sem culpas. Sem sonhos a realizar, ora, que bobagem. Sua vida transcorria sem nenhum escopo ideal; não havia para essa vida dona de si e do agora qualquer futuro. Só o presente que entediava e chamava um desejo terrível de morte, que não seria morte, seria uma simples escolha de: hoje eu posso acabar. Que mais ia fazer? A falta de fantasia e de cultura, aquela que tenta dar um sentido para a vida do ser humano, tornava-o sem graça e sem esperança; e essas coisas com as quais se devaneia a espera do amanhã são perda de tempo, distrações, a vida é nada, a vida é enfeite e palco iluminado demais. O rapaz já vivia tudo o que queria no momento, feito a chuva que não espera o dia seguinte para cair, e pronto. E foi assim que ele desapareceu na correnteza de um rio, porque Virgínia se esquecera de tê-lo ensinado a nadar.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Epílogos diários

São momentos delicados e sangrentos, que explodem purpúreos, como janela que se abre para o lado do sol das nove e meia quando ainda nem acordamos direito. As pupilas são esmagadas, os olhos são espremidos por alguns segundos, descompactando-se calmamente em cores depois de um flash: verde, carmim, preta. E se desperta então para o cansaço e a velhice mesmo quando o branco é ausente, por enquanto. A manhã chama a gente sem paciência, como o filho insistente, “mãe... manhê... ô mãããe!”... e a gente fica nervoso e grita sem querer, “mas o que é, diabos?”; manhãzinha violentamente infantil com sua luz aborrecida e demoníaca e orfã, desculpe minha impaciência de adulto nervoso e estúpido, eu não sei ser pai nem mãe.

domingo, 20 de setembro de 2009

"A vida se me é, e eu não entendo o que digo. Então eu adoro." (Clarice Lispector - A Paixão Segundo G.H.) - pintura de Hieronymus Bosch - "Jardim das Delícias"

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

O ovo, a galinha, a barata ou o Homem?

Porque os bichos sempre têm razão: se uma barata invade, pelo ralo, meu banho, se pássaros arruínam minha plantação, se mosquitos sugam meu sangue, se formigas desmontam o meu bolo, se morcegos fazem ninho no telhado de minha casa, o que posso fazer? Eles são humildes aborígenes espantados com minha invasão. E usam venenos para covardemente matar esses pobrezinhos curiosos. Ora, mas esta é minha casa, dona vespa, vá procurar abrigo noutro lugar, xô, xô! Será que nunca vamos viver em paz? Qual o terrível problema se vez ou outra um rato vem me visitar? Calamidade pública! Os bichos transmitem doenças! “Os bichos transmitem doenças”: coisa nenhuma!: meu corpo é mil vezes mais fraco e inferior ao deles, isso sim, por isso adoeço. Eu sou “asseada”, “higienizada”, lavo o traseiro com sabonete hidratante, evito o odor suarento, mantenho os cabelos sedosos, brilhantes, soltos, limpos: uma barata é que tem nojo de mim; ela me vê toda lustrosa e pensa, zombeteira: “bonito, pensa que me engana?; nem me venha com esse olhar nauseento, vá!”.

Quando e como?

E ela nasceu atrás do meu sofá, enquanto eu assistia a um filme de terror.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Quem é a mulher no escuro?

Eu ainda não disse o nome dela? É que não sei, mesmo. Deixa-me fechar os olhos e deixar a vida estranha escolher um. Mas gosto de Vírginia; Virgínia, a alma peca na penca almagre. Pronto, já escolhi. Agora podemos começar; segue comigo, leitor, não importa onde, sim?; mesmo que essa história não fale de tolos vampiros imberbes, nem de bruxas e suas magias estupidamente quixotescas, nem conte tórridos romances ou espetaculares golpes e traições, conflitos étnicos e policiais, cachorros falantes, ou que revele “segredos para o sucesso profissional, sexual”, fórmulas fáceis para uma vida "feliz". Ora, deixe de ser cabeça-oca, leitor, enchendo a carteira desses escritores vazios e vulgares. Desanimou-se? Fique firme – prometo ser uma boa exceção contra a mesmice da literatura mundial. E de antemão eu lhe previno: não tente entender meus relatos, não consulte livros sobre sonhos, tarólogos ou mestres em letras, para o seu próprio bem. Você terá só dificuldade comigo se por acaso for apenas leitor de parvoíces literárias, de livros que divertem, desses com clareza demais, científico, sem deliciosos segredos, “sobras da refeição de outra pessoa” – a complexidade e a incompreensão agradam o pensar e o sentir. Acorde para a vida! Quem avisa amigo é.

Um Achado Misterioso

Vi uma maçã. Mas não vi a sua frágil escuridão de dentro, vi apenas sua casca vermelha manchada, dentro devia ser escuro, secreto e largamente escuro, onde caberia o Universo inteiro mais um cisco de homem. Então, num ato de ousadia em substituição ao desgosto da fome, parti a maçã ao meio: o interior da fruta existiu claro e preciso. No silencioso significado desse rompimento escondeu-se para sempre o oculto da maçã.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Existe, eu sei: mas quedê?

Você desperta assustado e não sabe se corre pegar papel e caneta, tirar remela dos olhos, escovar os dentes ou se olhar todo amassado no espelho, duro, esperando, a cortina ainda fechada, o feixe de luz fraquinho: o que me aconteceu? Aconteceu um sonho pesado de sangue debaixo de pedras de uma civilização arruinada. Espere mais alguns anos, e então, quando acontecer de novo, não se levante: dê um tapa no despertador e afunde-se depressa no travesseiro.

“Eu tive um sonho bonito noite passada: um rio me levou, me rodopiou no encontro das águas com as pedras e os barrancos, e não me afoguei, eu ouvi música. Eu me lembro de ter visto uma mulher que caminhou para um rio mas que não pôde andar sobre ele; no entanto, ela andou nele, dentro dele, e nunca mais foi encontrada. Ela é música, hoje. A vida é tão sonho. A música é uma paixão.”

Começa assim. Depois a gente conta o resto da história.