Um sopro

"Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto - e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente." (Clarice Lispector)

Almas com almas

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Rainha Virgínia

_ Quem te deu a maçã, senhor homem?

_ Ora, a mulher!

_ Certo; quem deu à luz ao seu Salvador?

_ Quem mais que não uma mulher?

_ Não foi o seu Salvador como uma outra maçã que lhe ofertei para que pudesse, finalmente, distinguir o Bem do Mal, e conhecer o Céu e o Inferno, e de novo dores e sacrifícios?

_ Assim eu o escrevi e determinei.

_ Muito bem, você se adiantou: não sou, pois, a sua mais alta inteligência, o seu arroubo maior de espanto diante do Universo, a sua maior covardia vencida, o seu cérebro, ao invés de um naco de sua costela? Não sou eu a sua maior ambição? Não me fez dar à luz o seu “salvador” isento de suas gametas para que eu fosse a mais perfeita e intocável das criaturas vivas e que pudesse gerar, então, um ser completamente diferente de sua ignorância e brutalidade; e levando em conta que é impossível uma fecundação sem cópula, aquela que julgou imoral porque dela se aprazerou sem critérios durante toda a sua existência? Isto sem mencionar todas as “deusas” da sua mitologia como se tivesse desejado ser uma mulher. Isto sem mencionar todas as vezes em que, num passado bárbaro, você se deitou com outros homens como se fossem ideais de mulheres que empreenderam de modo doentio, homens inventando mulheres e homens adoradores de homens por tais brilhantes e fantasiosas criações sobre o gênero feminino.

_ Mas que disparate diz!

_ Não é disparate, é fato. Você se considera “sábio”, por essas e outras?

_ Você, mulher, não sabe o que diz! Devia me agradecer e beijar meus pés por tudo o que lhe conferi de melhor, e não parecer tão louca e difamadora. Não foi por menos que nunca lhe dei voz; pois não teria você desejado ser como um homem? Não é você, nestes tempos, como um homem? Não me perseguiu, não se apoderou de todo o meu conhecimento e agora não o possui de modo a ter os mesmos sentimentos de um homem?

_ Sou louca e sou homem, e você ainda me adora e se apaixona e se deita comigo. Deita-se comigo e não se satisfaz, porque sua ordem não é ao lado de uma mulher, nunca foi. Eu obedeci à Natureza, e cuidei de sua prole. Mas o homem que lhe parece mais sensível e ter alma feminina continua a sua obsessão. Quanto a ser louca e difamadora, e de ter “se apoderado de seus conhecimentos”, isto representa como sou superior, e como eu soube esperar e não ser tão sonhadora e estúpida.

_ Se hoje você é o que é, mulher, deve a mim, que venci batalhas e que avancei por todos os campos do saber...

_ Obrigado, pois, por ter sido meu “tão valente servo”, e por ter me trazido o tesouro mais precioso do mundo. Eu, a Rainha do Universo, lhe alforrio, e agora você pode tentar ser um homem de verdade, depois de tanto me bajular. Mas saiba: o seu legado heróico será esquecido; e, como sempre, por minha terna compaixão, considero como Arte todas as suas lucubrações. A partir de hoje, a bíblia e toda a mitologia será somente um debuxo do que o homem pensou saber um dia, já que todas as pessoas podem compreender o que digo sem escândalos e sem culpa, seja pela História, seja pela Biologia, seja pela Teologia, seja por uma lhana Inspiração. Esta Rainha, louca, liberta a Humanidade da grosseira razão do homem, e permite que Deus seja de cada um conforme sua sensibilidade. Agora, vá, porque tenho muito trabalho para corrigir todos os danos que você causou no mundo com sua insolência e covardia. Posso ser como o homem, hoje; e destarte, desfazer seus erros e amadurecer o ser Humano sem a sua leviandade. Mulher sempre fui, e sempre serei. Quanto a você, boa sorte para se distinguir de mim. E não ouse sacar de novo espadas: é tempo de sermos genuinamente racionais. Neste momento, eu escrevo as boas novas, com meus hormônios no seu devido lugar, inspirada. Se não for por essa via que vá desafiar meus escritos, será decapitado. Agora retire-se.