Um sopro

"Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto - e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente." (Clarice Lispector)

Almas com almas

segunda-feira, 14 de junho de 2010

A enfermidade salvadora II

Pois sou pura alma. No auge da enfermidade não neguei a mim mesmo? Agora sigo após o messias. Tudo o que é humano não tem valor nenhum; minh’alma segue pujante rumo à perfeição. Que é agora. Agora eu sou uma criatura perfeita. Puro instinto e intuição. Neguei-me a condição de pensar, pois a alma é sábia porque só intui. A sabedoria é espontânea; isto a enfermidade me deu – sentir sem artifícios, simplesmente respirando e olhando e ouvindo. “Quem pensa não é sábio; é estupidamente escrupuloso”; o homem é uma criatura religiosamente moralista – “negar a si mesmo” é uma transgressão em favor da alma, sábia, intuitiva, mãe dos instintos de vida e de morte, e da justiça. A alma é a inocência primitiva.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Na estrada

Minha vida? Ela estava angustiada dentro de casa; seus pais assistiam à televisão, mórbidos e entorpecidos, e então ela pediu as chaves do carro: "vou comprar cigarros"; eles apenas grunhiram. Foi até o posto de gasolina, encheu o tanque, comprou maços e maços, e pegou a estrada sem saber para onde ir, enquanto pudesse rodar por aí. Minha vida atravessou uma estrada erma e sem árvores, uma pastagem seca e um sol ardido; encontrou um boteco, resolveu parar, pediu um conhaque, acendeu um cigarro e flertou com estranhos. Comprou uma ficha do jukebox, botou uma música, dançou um pouco, pediu outro conhaque. Lá fora estava quente; e ela não queria voltar ao volante; outra vida ali arranhava o violão, e a minha se sentou perto e ficou. Agora não sabe para onde vai, só com a roupa do corpo. "Qual a cidade mais próxima?", ela pergunta; "Não sei... mas você chega lá; segue". Entrou no carro, girou a chave, deixou uma lágrima cair e percorreu não sei para onde no escuro atrás de "chegar"; ou não. Seguir e só seguir. Conhaque e cigarros. Boa viagem, vida minha.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Eu sou um filósofo?

Não consigo me decidir se tenho ou não algum problema mental – só sei que estou cansado de pensar que sei das coisas (pode ser que eu saiba); estou cansado de afirmar que tenho “consciência” da estranheza de meus pensamentos e de minhas sensações como uma desculpa para não sucumbir, quando é o que eu mais desejo – perder de vez a razão. Não vou nunca terminar de “racionalizar” com meu obscuro, que é uma ilusão!, e morrerei estafado, envelhecido antes da hora, magro, infeliz; por Deus!, eu sou um filósofo? Os filósofos são muito fortes, isso é verdade; ficam suspensos numa corda sobre um abismo, e mesmo que as mãos se cansem e sangrem, eles não se soltam. Eles não querem o abismo; querem provar que são mais fortes que eles próprios.