Um sopro

"Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto - e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente." (Clarice Lispector)

Almas com almas

domingo, 20 de setembro de 2009

"A vida se me é, e eu não entendo o que digo. Então eu adoro." (Clarice Lispector - A Paixão Segundo G.H.) - pintura de Hieronymus Bosch - "Jardim das Delícias"

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

O ovo, a galinha, a barata ou o Homem?

Porque os bichos sempre têm razão: se uma barata invade, pelo ralo, meu banho, se pássaros arruínam minha plantação, se mosquitos sugam meu sangue, se formigas desmontam o meu bolo, se morcegos fazem ninho no telhado de minha casa, o que posso fazer? Eles são humildes aborígenes espantados com minha invasão. E usam venenos para covardemente matar esses pobrezinhos curiosos. Ora, mas esta é minha casa, dona vespa, vá procurar abrigo noutro lugar, xô, xô! Será que nunca vamos viver em paz? Qual o terrível problema se vez ou outra um rato vem me visitar? Calamidade pública! Os bichos transmitem doenças! “Os bichos transmitem doenças”: coisa nenhuma!: meu corpo é mil vezes mais fraco e inferior ao deles, isso sim, por isso adoeço. Eu sou “asseada”, “higienizada”, lavo o traseiro com sabonete hidratante, evito o odor suarento, mantenho os cabelos sedosos, brilhantes, soltos, limpos: uma barata é que tem nojo de mim; ela me vê toda lustrosa e pensa, zombeteira: “bonito, pensa que me engana?; nem me venha com esse olhar nauseento, vá!”.

Quando e como?

E ela nasceu atrás do meu sofá, enquanto eu assistia a um filme de terror.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Quem é a mulher no escuro?

Eu ainda não disse o nome dela? É que não sei, mesmo. Deixa-me fechar os olhos e deixar a vida estranha escolher um. Mas gosto de Vírginia; Virgínia, a alma peca na penca almagre. Pronto, já escolhi. Agora podemos começar; segue comigo, leitor, não importa onde, sim?; mesmo que essa história não fale de tolos vampiros imberbes, nem de bruxas e suas magias estupidamente quixotescas, nem conte tórridos romances ou espetaculares golpes e traições, conflitos étnicos e policiais, cachorros falantes, ou que revele “segredos para o sucesso profissional, sexual”, fórmulas fáceis para uma vida "feliz". Ora, deixe de ser cabeça-oca, leitor, enchendo a carteira desses escritores vazios e vulgares. Desanimou-se? Fique firme – prometo ser uma boa exceção contra a mesmice da literatura mundial. E de antemão eu lhe previno: não tente entender meus relatos, não consulte livros sobre sonhos, tarólogos ou mestres em letras, para o seu próprio bem. Você terá só dificuldade comigo se por acaso for apenas leitor de parvoíces literárias, de livros que divertem, desses com clareza demais, científico, sem deliciosos segredos, “sobras da refeição de outra pessoa” – a complexidade e a incompreensão agradam o pensar e o sentir. Acorde para a vida! Quem avisa amigo é.

Um Achado Misterioso

Vi uma maçã. Mas não vi a sua frágil escuridão de dentro, vi apenas sua casca vermelha manchada, dentro devia ser escuro, secreto e largamente escuro, onde caberia o Universo inteiro mais um cisco de homem. Então, num ato de ousadia em substituição ao desgosto da fome, parti a maçã ao meio: o interior da fruta existiu claro e preciso. No silencioso significado desse rompimento escondeu-se para sempre o oculto da maçã.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Existe, eu sei: mas quedê?

Você desperta assustado e não sabe se corre pegar papel e caneta, tirar remela dos olhos, escovar os dentes ou se olhar todo amassado no espelho, duro, esperando, a cortina ainda fechada, o feixe de luz fraquinho: o que me aconteceu? Aconteceu um sonho pesado de sangue debaixo de pedras de uma civilização arruinada. Espere mais alguns anos, e então, quando acontecer de novo, não se levante: dê um tapa no despertador e afunde-se depressa no travesseiro.

“Eu tive um sonho bonito noite passada: um rio me levou, me rodopiou no encontro das águas com as pedras e os barrancos, e não me afoguei, eu ouvi música. Eu me lembro de ter visto uma mulher que caminhou para um rio mas que não pôde andar sobre ele; no entanto, ela andou nele, dentro dele, e nunca mais foi encontrada. Ela é música, hoje. A vida é tão sonho. A música é uma paixão.”

Começa assim. Depois a gente conta o resto da história.