Um sopro

"Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto - e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente." (Clarice Lispector)

Almas com almas

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

A mulher

Vitória também estava amando? Mas ela não dizia: não dizia o quê? “Eu te amo”? Ah, Vicente não esperava que ela dissesse para perceber ou se certificar; tão melhor que calassem essa frase e que somente a proferissem com tamanha sabedoria que viria dum estado de espírito final, arrebatador e mortal. Dir-se-iam o “eu te amo” antes do salto, pois se permanecessem vivos depois dessas palavras, adoeceriam terrivelmente: eram duas pessoas distintas, embora suas almas tivessem alguma semelhança e se comunicassem e quisessem se unir; cada um individualmente egoísta e colorido. Não, não há união, nem sequer o matrimônio pode unir duas pessoas – elas fenecem e perdem a cor. Vicente e Vitória eram livres demais: os dois tinham descoberto certa liberdade bastante intensa e peculiar; poderiam se suportar, tolerar, aprender qualquer coisa, mas lutariam sem consciência contra a presença um do outro. O inferno é, realmente, o outro? Como não se sofre com o anseio e a dor do próximo; como não é perturbadora a injustiça, a ignorância, a violência, a falta de... Amor? Mesmo a forma mais sublime de amor traz inquietações e sofrimento.

Parece que ou se ama ou se vive. Dá para amar e viver? Não: viver não é amar, e amar não é viver – acontecem separados. Será que quem ama tem o direito de desejar ficar só de quando em quando? De não falar, ver nem tocar quem ama? Ah, mas isso não quer dizer que a presença do outro seja desagradável, e que se queira encontrar outro amor na distância necessária e passageira: seria apenas alguém que ama e tem a vida para viver, um mundo para descobrir, sozinho. Ora, e por que não descobrir esse mundo juntos? Não é possível: são mundos particulares que se quer encontrar. Então partem os dois na caminhada; o amor é um laço sutil e invisível, e eles estão livres para a descoberta de seus próprios mundos. Também, o mundo de um pode não ser interessante para o outro; mas sobre isso eles conversam depois, e conseguem compreensão – a mais harmoniosa e altruísta forma de individualismo. Muitos não conseguem entender: traem e matam seus amados. Cada um vive e ama, e amam essa disciplinada e fundamental independência.

O homem

Vicente não sabia amar. Como é que se ama alguém? É algo que se aprende ou já se nasce sabendo? O único amor que deve existir é o de mulher-mãe; para compensar, o deus-pai ama a todas as outras criaturas. Mas amor de mãe é um feitiço; e o Deus desconhece-se. Se o amor é algo que se aprende, como provar que se está no caminho certo? Duas pessoas que se amam estão constantemente à prova; e em matéria de amor, quem é melhor: o homem ou a mulher? Os dois estão enganados: a mulher se engana com a maternidade, e o homem... Bem, o homem sempre pensará que é um deus. Ninguém sabe amar! Mas tantos dizem eu te amo; ah, a eterna repetição: “eu te amo”, oco e sem sentido. O amor do Cristo foi um amor de piedade: é preciso ter dó da pessoa amada, e também se é amado por dó. “Eu te amo, pois és um perdido” e “Eu te amo por ser uma lastimosa invenção”.

Grande mistério, o amor: pela psicologia, um egoísmo doentio; pela psiquiatria, uma obsessão patológica; pela sociologia, um altruísmo; pelo cristianismo, uma compaixão; pela filosofia... Pela filosofia sei lá eu, filósofos não sabem o que querem da vida; pela poesia, flor e dor; amor por amor é: a resposta que vale uma fortuna, e ninguém para palpitar. Vicente ficou triste, um pouco cansado de pensar nisso, e adormeceu, pois o que é o amor só seria revelado na dissolução de pensamentos que é o sonho, para ser preservado da limitada compreensão humana – Deus prefere que os humanos brinquem como crianças de almas ainda não formadas com o amor, e que assim seja, amém.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Nada mais é puro

Vitória foi até a varanda do apartamento de Vicente; dava de frente para o mar. E era uma noite calma, o próprio mar numa calmaria de quem contempla o ócio depois de grande labor; tanto rebentou suas ondas nas rochas; as rochas também descansam – mas com certa dor, assim como a criatura humana ali tivera um dia de sol sofrido, um dia de vida que desgastou com algumas de suas células. Vitória recebia num ímpeto a vida: batia e voltava, batia e voltava; ela envelhecia, apesar de ser energizada e transformada pelo sal. Vicente se aproximou e viu a mulher gasta pelo tempo de vida, olhando quase sem piscar para aquilo que lhe rebentava uma alegria sofrida. Não tinha ninguém na praia; Vicente olhava o mar e esperava, como se dele fosse surgir um ser perfeito e divino, que faz isso: sai de casa escondido dos pais. Morava no oceano esse ser, que um dia pudesse ficar entre os humanos, abrindo mão da imortalidade, porque ia secar. Que ia fazer entre os humanos? Ah, iria surpreendê-los, e contar-lhes a verdade mais dura de todas, a primeira e única que aprenderia aqui fora: “nós somos pura solidão e angústia”. Vitória via o mar e sentia nele muita presença, “ah, ali não há solidão nem angústia”; a realização maior da Natureza, plena e feliz, “deve ser uma festa lá embaixo”.
_ Você consegue sentir o cheiro da noite?, veio Vicente, lá da festa, todo molhado e salgado.
Vitória ia responder o óbvio: de maresia nauseante; mas sabia que não era desse cheiro que Vicente lhe perguntara, ah, cheiro de noite tem sempre coisa de infância. Ela respirou fundo umas três vezes; cheiro de quê?
_ Não sei dizer; o olfato não funciona sozinho.
“O olfato não funciona sozinho”... Os cinco órgãos dos sentidos todos dependentes um do outro, indissociáveis. Não se consegue sentir o cheiro da noite porque é preciso, antes, se lembrar de alguma que se viu, comeu, ouviu ou tocou.
_ Noite não tem cheiro, concluiu Vitória.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Sementes ciganas

Sabe, uma vez eu pensei, pensei, e acreditei que em apenas um dia, sem contar tempo, esquecendo-se dele; em um dia que o sol nasce e se põe, é possível uma existência plena: você em contato profundo com você mesmo, esquecendo o mundo, as leis, o bem, o mal; um contato seu com seu "espírito", e milhões, infinitas sensações acontecem nesse único dia. Tudo bem, isso pode até ser possível – talvez necessário; mas viver é tão surpreendente! A gente, sem perceber, lança sementes ao vento, o tempo todo; quando menos esperamos, alguém traz as flores e os frutos dessas sementes que germinaram, e estão muito felizes. Você não tem certeza de que essa alegria da pessoa veio de uma das sementes que você soprou por aí, mas sente, no fundo, sem conseguir explicar, que, sim, é verdade: foi você. Isso dá um prazer imenso pela vida! Que venham muitos amanhãs; há sempre surpresas. Num dia, não sei qual, mas num dia, alguém virá trazer para você a mais bela flor e o mais saboroso fruto que nasceu de uma semente que se soltou da árvore frondosa e forte que você é, se tornou, será, e num fim, foi; e veja que não será um fim: você estará espalhado por todos os cantos, num ciclo perfeito, divino – eterno.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Penso, logo existo; existo, logo penso; etc e tal.

A filosofia, a ciência e a religião têm lá suas verdades absolutas; mas, vem cá, chega mais, deixa-me lhe fazer uma pergunta quando você se depara com uma dessas verdades: FAZ SENTIDO PARA VOCÊ?

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O fim que acende estrelas

Eu existo, Ulisses! Sem origem, sem herança de sangue, memórias, cor, credo, classe social, civilidade; eu existo, neste momento, agora. Como dói existir: dói a ponto de se desejar a morte, depressa, já, cada minuto a mais dessa sensação é insuportável, sufocante. Vem, morte, que estou pronto! Neste único dia que termina, eu existi tão plenamente que não pode haver um depois; não há nada mais que se possa acrescer – continuar é viver uma vida de falsidades. A magnitude desse instante tanto me inflama que pede a fatal combustão: sou estrela que vai explodir. Brilho eterno é o sol. Eu sou o sol? Não: sou um pequenino astro de luz emprestada. O sol: insuportável, inatingível.

E no negror existencial desta noite cósmica eu, o singular astro luminoso universal no seu grau máximo de luminosidade e incandescência – eu estouro.

domingo, 25 de julho de 2010

Indícios da enfermidade salvadora

Se por acaso sentir uma profunda melancolia e um desgosto pela vida, não procure de imediato psicólogos e psiquiatras; passeie os olhos por sua existência até então, reveja suas escolhas, perceba fatos que não foram superados. O mundo tem preservado por milênios “valores e conceitos fundamentais” (mas eles não são perfeitos e indubitáveis) que têm mantido o avanço de civilizações, que têm mantido o seu “rebanho” sempre adiante – ele não quer que uma ovelhinha se disperse e encontre novos caminhos, pois que há! Existe uma Ordem sobre o comportamento em sociedade para fazer do homem uma ferramenta para a evolução industrial, Ordem que reprime e censura qualquer inclinação humana indiferente aos moldes econômicos da Nação. Esta Ordem, quando foi criada, visava trazer “paz” aos homens sociais. Ora, como seria possível fazer da criatura humana, aquela que pensa, que sonha, que duvida, que muda, sensível, dona de instintos genuínos que revelam o que deve fazer uma simples máquina orgânica? Depois de milhares de anos, mesmo rodeado das mais ataviadas construções culturais, morais, filosóficas, científicas, religiosas, o homem não sabe quem é. E não é a psicologia – compactuada com a Ordem, muito menos a psiquiatria!, que fará o ser humano reacender a chama de existir, de ser, de ter liberdade, de refletir, de dominar a si próprio, de se conhecer. Depressão não é uma doença: é um dolorido despertar para a existência; não deixe essa chance nas mãos de “profissionais da saúde mental”, eles só farão reprimir e sedar, e garantir que o indivíduo que está começando a sentir sangue correndo nas veias seja covardemente afastado daqueles cujos corações bombam fluidos industriais, de espírito e de alma secos, que rangem atritando-se um no outro – os que interessam. Instrua-se, seja mestre de si, busque sabedoria, antes de ir ter com psicólogos e psiquiatras: eles estão preocupados com a “paz mundial”, não com o ser humano – com você.

domingo, 18 de julho de 2010

Contemplação

Precisava ver a beleza das ilhas que encontrei mar afora; pena que não dá para parar o movimento, e eu tive de ir em frente, deixar pra trás. Quando cheguei à praia, eu escalei o rochedo e fiquei olhando, olhando do alto... não senti saudade; será que é um grande sonho? Será que eu escrevo sonhos? Escrevo e não entendo. Quem diz que entende o sonho é um farsante. Eu estava ali, vivo, olhos abertos, ouvidos captando sons e sons, e não tive ideia nenhuma por onde começar: começar o quê? Eu já estou na metade! E nem sei quem sou; ou para onde vou. Acho que é isso: vou e sou, basta.

sábado, 10 de julho de 2010

Para além do bem e do mal

Resta a cada ser humano decidir se é senhor ou escravo.

terça-feira, 6 de julho de 2010

A enfermidade salvadora III

Do que a enfermidade me salvou? Da eterna repetição. Eu era um rato de biblioteca e era também cativo da moral. Ler muito e viver cheio de pudor eram a minha desgraça: isso é ser saudável. É saudável que se infle o cérebro de conhecimentos variados e também que se evite o mal com excesso de bondade. Eu esbanjava saúde, mas era terrivelmente infeliz. Renunciado. Resignado. Gordo. Indolente. Tagarela. A enfermidade me fez dizer sim ao que era proibido e estranho, e nessa permissão a liberdade se me apareceu resplandecente. Eu não estava livre apenas para decidir por conta própria, mas livre de mim mesmo, da vida, das verdades que os homens contam. Estar enfermo me proporcionou um passeio pelo lado negro e contrário das coisas, e ali vi inferno tão belo. Não era um inferno de almas atormentadas, correntes ou lagos de fogo: era um inferno pessoal, era o meu canto mais profundo e abandonado, coberto por heras geladas, líquen e microrganismos. Eu vi meu eu recôndito e precioso. A minha essência.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

A enfermidade salvadora II

Pois sou pura alma. No auge da enfermidade não neguei a mim mesmo? Agora sigo após o messias. Tudo o que é humano não tem valor nenhum; minh’alma segue pujante rumo à perfeição. Que é agora. Agora eu sou uma criatura perfeita. Puro instinto e intuição. Neguei-me a condição de pensar, pois a alma é sábia porque só intui. A sabedoria é espontânea; isto a enfermidade me deu – sentir sem artifícios, simplesmente respirando e olhando e ouvindo. “Quem pensa não é sábio; é estupidamente escrupuloso”; o homem é uma criatura religiosamente moralista – “negar a si mesmo” é uma transgressão em favor da alma, sábia, intuitiva, mãe dos instintos de vida e de morte, e da justiça. A alma é a inocência primitiva.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Na estrada

Minha vida? Ela estava angustiada dentro de casa; seus pais assistiam à televisão, mórbidos e entorpecidos, e então ela pediu as chaves do carro: "vou comprar cigarros"; eles apenas grunhiram. Foi até o posto de gasolina, encheu o tanque, comprou maços e maços, e pegou a estrada sem saber para onde ir, enquanto pudesse rodar por aí. Minha vida atravessou uma estrada erma e sem árvores, uma pastagem seca e um sol ardido; encontrou um boteco, resolveu parar, pediu um conhaque, acendeu um cigarro e flertou com estranhos. Comprou uma ficha do jukebox, botou uma música, dançou um pouco, pediu outro conhaque. Lá fora estava quente; e ela não queria voltar ao volante; outra vida ali arranhava o violão, e a minha se sentou perto e ficou. Agora não sabe para onde vai, só com a roupa do corpo. "Qual a cidade mais próxima?", ela pergunta; "Não sei... mas você chega lá; segue". Entrou no carro, girou a chave, deixou uma lágrima cair e percorreu não sei para onde no escuro atrás de "chegar"; ou não. Seguir e só seguir. Conhaque e cigarros. Boa viagem, vida minha.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Eu sou um filósofo?

Não consigo me decidir se tenho ou não algum problema mental – só sei que estou cansado de pensar que sei das coisas (pode ser que eu saiba); estou cansado de afirmar que tenho “consciência” da estranheza de meus pensamentos e de minhas sensações como uma desculpa para não sucumbir, quando é o que eu mais desejo – perder de vez a razão. Não vou nunca terminar de “racionalizar” com meu obscuro, que é uma ilusão!, e morrerei estafado, envelhecido antes da hora, magro, infeliz; por Deus!, eu sou um filósofo? Os filósofos são muito fortes, isso é verdade; ficam suspensos numa corda sobre um abismo, e mesmo que as mãos se cansem e sangrem, eles não se soltam. Eles não querem o abismo; querem provar que são mais fortes que eles próprios.

domingo, 30 de maio de 2010

A enfermidade salvadora

Os portões fechados do cérebro foram abertos: escaparam milhares de sensações perigosas, assim como haverá um dia em que o diabo sairá da sua prisão. As sensações clandestinas me causaram maravilhas, soltas e à vontade em cada parte de meu corpo. A mente se rendeu, abdicou-se de uma mera vigia, e dessa feita pude conhecer como essa agudeza sensorial secreta que estava aprisionada faz o humano se distinguir das outras criaturas vivas. Alguém deve ter experimentado isso para dizer que o homem é a semelhança de Deus! Durante o sono, na dor que não conseguimos esquecer, no nosso próprio desespero, contra a nossa vontade, chega até nós a sabedoria, por intermédio da majestosa graça da enfermidade!

sexta-feira, 30 de abril de 2010

É difícil falar...

Se me descobri ou me encontrei, desconheço; se isso tivesse acontecido, um par de asas se me teriam nascido nos ombros; no entanto, meus pés continuam descalços no chão. Nasci e a vida me descobriu; e a vida me criou dizendo que a natureza ia sempre cuidar de mim, que a genética do fio de meu cabelo e do pó das estrelas era a mesma, de modo a estarmos sempre ligados. Na verdade, o humano descobre-se nascendo, mas não sabe; até que passe um tempo e ele se torne capaz de saber, já estará numa multidão de outros humanos que também não sabem nada. E as estrelas, que não falam, observam; e a natureza que não fala, observa; só quando o humano derrama sangue ele finalmente descobre quem é, mas não vive para dizer.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Impossível falar sobre coisas humanas e não pecar por execesso de ironia e sarcasmo; preocupante é ouvir só poesia.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Até quando nossas narinas terão de suportar o odor de urina humana masculina em Deus?

quinta-feira, 25 de março de 2010

... e tem mais de onde isso saiu

Tem dia que quero te ver, tem dia que não. Minha cara é de fases. Não me convidem para jantares, me chamem para observar galinhas, elas são tão interessantes – e diz-se que elas guardam mistérios no andar. Se eu pudesse, ia morar nas montanhas, andar todo molambento, viver de frutinhas silvestres, longe desse mundo onde existo como um saco de carne misturado a sentimentos estúpidos, a maioria – senão todos – inventados pelos outros, por gente que nunca ouvi falar. Mas eu sou um artista. Eu sou uma excelente farsa. Sou como na arte de grandes gênios. Eu queria ser uma pessoa normal: é que invento demais e isso me afasta da realidade onde a maioria vive cheia de tradições. Mas não vou exagerar falando sobre mim, deixa-me usar algumas palavras para resumir: chuva, barata, guarda-roupa, maçã, insanidade, mau-humor, escuro, imortalidade, samambaia, aberração, moscas, gatos, cru, mar, febre, gastrite, ralo, livro, fome, jejum, anti-rugas, dor nas costas, arte, inexistências, pão, felicidade clandestina, amarelo, Corra Lola, Corra, roupa velha e rasgada, chinelo gasto, merda de passarinho, sangue, inchaço, batata, agridoce, cigarro, vontade, árvore de natal... cansei.

sábado, 20 de março de 2010

Martelo e pá na mão

Aconteceu-me de ouvir do vento o que encontrei bem mais tarde em livros. Mas o que mais me decepcionou não foi ter descoberto que repousava plácido nos livros o maior e doloroso pensamento que alcancei pela ignorância, nem tanto pela instrução: a decepção me veio contra todos aqueles que me acusavam de mentiroso quando a verdade sempre esteve presente e às fuças da humanidade; acusavam-me de mentiroso porque a sabedoria realmente estava trancada nos livros e de lá não tinham como vir à tona sem o auxílio de um mártir. Que um descuidado a encontre, é assim que acontece; ou que ele vá viver de mentiras pelo resto da vida por causa de palavras que estão enterradas em bibliotecas. Agora que li e ressuscitei uma porção de verdades, para a segurança nacional, sedaram-me e me aprisionaram, como se eu fosse uma espécie de perigoso livro vivo. Ai daquele que não tem uma pá para desenterrar um livro que sentenciaram injustamente à morte. E ai daquele que não persiste em ouvir do vento, a testemunha do crime, o seu lamento e seu desejo de vingança.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Amor inconsciente

Então eu fiz esta canção:

Você é minha preciosa porção

De fezes

Da qual não consigo me livrar

Acho que gosto de te contemplar

No meu vaso sanitário

Você é o pior cigarro que já fumei

Aquele, que comprei com os últimos centavos

Que eu tinha

Será que eu preciso perguntar

Ao tio Freud

Se devo dar a descarga

Ou parar de fumar

Você?

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

O segredo da vida

Porque os insetos têm a brutalidade orgânica de Deus e eu tenho uma linguagem exata para isso. Se olho demorado uma barata, eu descubro de onde vim, por exemplo. A barata não diz nada, veja bem, eu é que invento coisas porque barata nos olhos é uma pergunta rogatória. Naquilo que não se exprime eu emprego a minha lexicologia. Num inseto que eu não abro e não sei, que é diferente de um cão que faço babar por um estímulo artificial, é que uso as palavras – é impossível não metaforizar com um mosquito.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Os bons morrem de câncer?

"... também estive mesmo doente, com apertos de alergia nas vias respiratórias; daí, tive de deixar de fumar (coisa tenebrosa!) e, até hoje (cabo de 34 dias!), a falta de fumar me bota vazio, vago, incapaz de escrever cartas, só no inerte letargo árido dessas fases de desintoxicação. Oh coisa feroz. Enfim, hoje, por causa do Natal chegando e de mais mil-e-tantos motivos, aqui estou eu, heróico e pujante, desafiando a fome-e-sede tabágica das pobrezinhas das células cerebrais. Não repare." (carta de João Guimarães Rosa)

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Uma gota de sabedoria

Não se entende mesmo de onde vem a luz da sabedoria; sabe-se apenas que um ser a mantém dentro da gente, um outro, imparcial, menstrual, inorgânico, algo que vaza automaticamente, emanado em vapor, ah, o vapor que é a tácita construção da chuva. O pensamento se constrói por meio de finíssimas partículas elétricas; e a gente chove de repente – barulhosos, fugazes, efêmeros.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Conversando com a Natureza?

Naquela efervescência da natureza na mulher, imiscuída de escuro e de árvores, uma voz despontou:

_ Olá, minha filha, sou eu, sua Mãe.

­_ O quê? Eu não tenho mãe.

_ Justamente por isso é que sou Mãe de todos vocês.

_ Você é a Natureza falando?

_ Não sei, e tomara que eu não saiba. Sou Mãe, e basta.

_ Ora, mas o mundo não nasceu – ele foi criado. Criar qualquer um cria: homem, criança, joão-de-barro.

_ Eu sei disso. Sou Mãe porque cuido. Sempre que uma mulher foi cuidadosa com as coisas. Depois da Criação, me chamaram para cuidar do Universo.

_ E você é mãe biológica ou Mãe Gentil?

_ Não seja piadista, menina.

_ É que está uma noite tão bonita e agradável que não quero sermões.

_ Mas não vim dizer sermão. Vim trazer novidades. Suponha que eu seja como a tal voz vinda da sarça ardente.

_ Ah, era só o que me faltava. Sei bem de onde você vem, devo estar delirando, devo ter sido arrebatada por algum espírito que vaga por essas florestas, coisas do folclore, e, por mais que eu diga não ao folclore, meu inconsciente gosta de zombar comigo.

_ Que grosseria!

_ Pois eu prefiro ficar em silêncio. Se você é mãe para sempre linda, e para sempre azul nos olhos, mãe de amor imenso, céu e mar, e pôr-do-sol na praia, porque olhar o mar de tarde e respirar sal calmo é estar do seu lado, respirando vida, respirando meu lar, de onde vim, do seu silêncio interno e mágico e quente; se é tudo isso, não me diga nada, fique somente aí onde está.

_ Eu sou um silêncio que fala.

_ Então me diga se sou tão humana.

_ Você é humana assim como eu sou silêncio. É o nosso pacto com a vida. Todas as maravilhas e todos os infortúnios que nos acontecem são acidentes porque transitamos nas mesmas direções. O mundo é uma bela tragédia! E eu só faço dirigir esses espetáculos para que não passem mesmo de uma representação artística, senão o trágico perde a graça, e todos podem morrer.

_ Você é mãe dos tolos.

_ E como sou! Sou Mãe de quem aprende que a tolice move todas as coisas.

_ Oh, mãezinha! Será que minha vida inteira passará nesses termos de escritor barroco?

_ É a Natureza que escreve e lê, minha filha – nossas imagens mais duradouras só podem ser encontradas na literatura.

Depois de uma pausa para reflexão, como num escritório se faz uma pausa para o café, a voz prosseguiu:

­_ Sem mais delongas: sabe quem eu sou de verdade? Eu sou aquele escuro que você um dia buscou numa maçã repartida.

_ Pois eu pensava que o escuro daquela maçã me havia escapado para sempre.

_ Acontece que um ou outro ser humano fica sabendo de um escuro intocável. Saia desta encosta glorificada, Virgínia – só Shakespeare fez semelhante revelação aos seus personagens. Nem aquela que pariu o Cristo jamais ouviu o que te digo hoje, em palavras e em gestos.

Diante da voz, Virgínia chorou e sangrou entre as pernas, arrefecendo-se diante dela. Oh, mas isto é muito funesto! Tal voz só podia ser algum demônio! O espírito daquele pintor morto? “Levanta-te. Tu não precisas saber desse escuro – é uma luz perdida, uma luz fugida, uma luz rebelde. Ela não te pertence, e, sim, tu tens razão, tal escuro que procuraste um dia nos escapa eternamente, esta voz que te diz onde achá-lo, pois se é algo que domina a tua linguagem e o teu entendimento, então só pode ser uma balela. Vamos, levanta-te, e anda daqui! Nada que fala através do entendimento humano faz parte do sagrado!”

(O Homem, a Mulher e o Gato no Escuro)

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Psicologia

É como erguer um olho de gato no escuro. Você enxerga o que está perto, mas sabe que o essencial fica camuflado na noite, e que pode ser seu, pois é uma noite eterna. O alvorecer é um difícil exercício da consciência. A consciência é um olho de gato no escuro.

sábado, 9 de janeiro de 2010

...

Eu não sei por que gosto tanto da solidão se ela faz mal. E nessa solidão parece que eu vejo o rosto de Deus; e eu vejo meu coração e minha alma e vejo como funciona a minha razão; e mesmo assim, falta tanto; acho que eu escrevo pra ter alguém, pra conhecer alguém, pra ficar rodeado de gente; estou num poço fundo e a claridade é uma corda; não sei se subo; estou um pouco cansado... essas coisas me dão trabalho e talvez eu deva sofrer como recompensa; minha vida é pro outro. Mas que eu queria muito viver diferente, ah, isso eu queria. Dói ver o tempo passar. E nada acontecer. Minhas mãos estão cheias de sementes; mas cadê o chão da realidade? ... Que é que se pensa do real que eu não possa participar, eu, o sonhador? Eu sonho e vivo, não estou morto ou preso a uma cama. Eu não sei o que devo mudar. Eu mudo e mundo muda? Isso não é mudança! É concessão! O mundo é sei lá. Quem disse que os meus olhos estão errados ou tortos? A vida é que parece não ter direção; vá ver é coisa de escolher. Mas eu quero tudo; tenho medo de escolher e me arrepender; nesse caso, escolhe-se de novo. Escolhi uma vez só: eu quero tudo. Ninguém quer tudo; todo mundo quer uma coisa só. Por isso sou tão sozinho. As pessoas não gostam dos soberbos – querer tudo é um pecado. Eu sofro a consequência da minha escolha – a solidão faz mal porque ninguém quer me ouvir que vejo Deus.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

A saudade de Virgínia

“Gato que brincas na rua

como se fosse na cama,

invejo a sorte que é tua

Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais

Que regem pedras e gentes,

Que tens intinstos gerais

E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,

Todo o nada que és teu.

Eu vejo-me e estou sem mim,

Conheço-me e não sou eu.” (Fernando Pessoa)