Um sopro

"Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto - e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente." (Clarice Lispector)

Almas com almas

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Nada mais é puro

Vitória foi até a varanda do apartamento de Vicente; dava de frente para o mar. E era uma noite calma, o próprio mar numa calmaria de quem contempla o ócio depois de grande labor; tanto rebentou suas ondas nas rochas; as rochas também descansam – mas com certa dor, assim como a criatura humana ali tivera um dia de sol sofrido, um dia de vida que desgastou com algumas de suas células. Vitória recebia num ímpeto a vida: batia e voltava, batia e voltava; ela envelhecia, apesar de ser energizada e transformada pelo sal. Vicente se aproximou e viu a mulher gasta pelo tempo de vida, olhando quase sem piscar para aquilo que lhe rebentava uma alegria sofrida. Não tinha ninguém na praia; Vicente olhava o mar e esperava, como se dele fosse surgir um ser perfeito e divino, que faz isso: sai de casa escondido dos pais. Morava no oceano esse ser, que um dia pudesse ficar entre os humanos, abrindo mão da imortalidade, porque ia secar. Que ia fazer entre os humanos? Ah, iria surpreendê-los, e contar-lhes a verdade mais dura de todas, a primeira e única que aprenderia aqui fora: “nós somos pura solidão e angústia”. Vitória via o mar e sentia nele muita presença, “ah, ali não há solidão nem angústia”; a realização maior da Natureza, plena e feliz, “deve ser uma festa lá embaixo”.
_ Você consegue sentir o cheiro da noite?, veio Vicente, lá da festa, todo molhado e salgado.
Vitória ia responder o óbvio: de maresia nauseante; mas sabia que não era desse cheiro que Vicente lhe perguntara, ah, cheiro de noite tem sempre coisa de infância. Ela respirou fundo umas três vezes; cheiro de quê?
_ Não sei dizer; o olfato não funciona sozinho.
“O olfato não funciona sozinho”... Os cinco órgãos dos sentidos todos dependentes um do outro, indissociáveis. Não se consegue sentir o cheiro da noite porque é preciso, antes, se lembrar de alguma que se viu, comeu, ouviu ou tocou.
_ Noite não tem cheiro, concluiu Vitória.