Um sopro

"Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto - e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente." (Clarice Lispector)

Almas com almas

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Uma gota de sabedoria

Não se entende mesmo de onde vem a luz da sabedoria; sabe-se apenas que um ser a mantém dentro da gente, um outro, imparcial, menstrual, inorgânico, algo que vaza automaticamente, emanado em vapor, ah, o vapor que é a tácita construção da chuva. O pensamento se constrói por meio de finíssimas partículas elétricas; e a gente chove de repente – barulhosos, fugazes, efêmeros.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Conversando com a Natureza?

Naquela efervescência da natureza na mulher, imiscuída de escuro e de árvores, uma voz despontou:

_ Olá, minha filha, sou eu, sua Mãe.

­_ O quê? Eu não tenho mãe.

_ Justamente por isso é que sou Mãe de todos vocês.

_ Você é a Natureza falando?

_ Não sei, e tomara que eu não saiba. Sou Mãe, e basta.

_ Ora, mas o mundo não nasceu – ele foi criado. Criar qualquer um cria: homem, criança, joão-de-barro.

_ Eu sei disso. Sou Mãe porque cuido. Sempre que uma mulher foi cuidadosa com as coisas. Depois da Criação, me chamaram para cuidar do Universo.

_ E você é mãe biológica ou Mãe Gentil?

_ Não seja piadista, menina.

_ É que está uma noite tão bonita e agradável que não quero sermões.

_ Mas não vim dizer sermão. Vim trazer novidades. Suponha que eu seja como a tal voz vinda da sarça ardente.

_ Ah, era só o que me faltava. Sei bem de onde você vem, devo estar delirando, devo ter sido arrebatada por algum espírito que vaga por essas florestas, coisas do folclore, e, por mais que eu diga não ao folclore, meu inconsciente gosta de zombar comigo.

_ Que grosseria!

_ Pois eu prefiro ficar em silêncio. Se você é mãe para sempre linda, e para sempre azul nos olhos, mãe de amor imenso, céu e mar, e pôr-do-sol na praia, porque olhar o mar de tarde e respirar sal calmo é estar do seu lado, respirando vida, respirando meu lar, de onde vim, do seu silêncio interno e mágico e quente; se é tudo isso, não me diga nada, fique somente aí onde está.

_ Eu sou um silêncio que fala.

_ Então me diga se sou tão humana.

_ Você é humana assim como eu sou silêncio. É o nosso pacto com a vida. Todas as maravilhas e todos os infortúnios que nos acontecem são acidentes porque transitamos nas mesmas direções. O mundo é uma bela tragédia! E eu só faço dirigir esses espetáculos para que não passem mesmo de uma representação artística, senão o trágico perde a graça, e todos podem morrer.

_ Você é mãe dos tolos.

_ E como sou! Sou Mãe de quem aprende que a tolice move todas as coisas.

_ Oh, mãezinha! Será que minha vida inteira passará nesses termos de escritor barroco?

_ É a Natureza que escreve e lê, minha filha – nossas imagens mais duradouras só podem ser encontradas na literatura.

Depois de uma pausa para reflexão, como num escritório se faz uma pausa para o café, a voz prosseguiu:

­_ Sem mais delongas: sabe quem eu sou de verdade? Eu sou aquele escuro que você um dia buscou numa maçã repartida.

_ Pois eu pensava que o escuro daquela maçã me havia escapado para sempre.

_ Acontece que um ou outro ser humano fica sabendo de um escuro intocável. Saia desta encosta glorificada, Virgínia – só Shakespeare fez semelhante revelação aos seus personagens. Nem aquela que pariu o Cristo jamais ouviu o que te digo hoje, em palavras e em gestos.

Diante da voz, Virgínia chorou e sangrou entre as pernas, arrefecendo-se diante dela. Oh, mas isto é muito funesto! Tal voz só podia ser algum demônio! O espírito daquele pintor morto? “Levanta-te. Tu não precisas saber desse escuro – é uma luz perdida, uma luz fugida, uma luz rebelde. Ela não te pertence, e, sim, tu tens razão, tal escuro que procuraste um dia nos escapa eternamente, esta voz que te diz onde achá-lo, pois se é algo que domina a tua linguagem e o teu entendimento, então só pode ser uma balela. Vamos, levanta-te, e anda daqui! Nada que fala através do entendimento humano faz parte do sagrado!”

(O Homem, a Mulher e o Gato no Escuro)

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Psicologia

É como erguer um olho de gato no escuro. Você enxerga o que está perto, mas sabe que o essencial fica camuflado na noite, e que pode ser seu, pois é uma noite eterna. O alvorecer é um difícil exercício da consciência. A consciência é um olho de gato no escuro.

sábado, 9 de janeiro de 2010

...

Eu não sei por que gosto tanto da solidão se ela faz mal. E nessa solidão parece que eu vejo o rosto de Deus; e eu vejo meu coração e minha alma e vejo como funciona a minha razão; e mesmo assim, falta tanto; acho que eu escrevo pra ter alguém, pra conhecer alguém, pra ficar rodeado de gente; estou num poço fundo e a claridade é uma corda; não sei se subo; estou um pouco cansado... essas coisas me dão trabalho e talvez eu deva sofrer como recompensa; minha vida é pro outro. Mas que eu queria muito viver diferente, ah, isso eu queria. Dói ver o tempo passar. E nada acontecer. Minhas mãos estão cheias de sementes; mas cadê o chão da realidade? ... Que é que se pensa do real que eu não possa participar, eu, o sonhador? Eu sonho e vivo, não estou morto ou preso a uma cama. Eu não sei o que devo mudar. Eu mudo e mundo muda? Isso não é mudança! É concessão! O mundo é sei lá. Quem disse que os meus olhos estão errados ou tortos? A vida é que parece não ter direção; vá ver é coisa de escolher. Mas eu quero tudo; tenho medo de escolher e me arrepender; nesse caso, escolhe-se de novo. Escolhi uma vez só: eu quero tudo. Ninguém quer tudo; todo mundo quer uma coisa só. Por isso sou tão sozinho. As pessoas não gostam dos soberbos – querer tudo é um pecado. Eu sofro a consequência da minha escolha – a solidão faz mal porque ninguém quer me ouvir que vejo Deus.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

A saudade de Virgínia

“Gato que brincas na rua

como se fosse na cama,

invejo a sorte que é tua

Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais

Que regem pedras e gentes,

Que tens intinstos gerais

E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,

Todo o nada que és teu.

Eu vejo-me e estou sem mim,

Conheço-me e não sou eu.” (Fernando Pessoa)