Um sopro

"Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto - e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente." (Clarice Lispector)

Almas com almas

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

A mulher

Vitória também estava amando? Mas ela não dizia: não dizia o quê? “Eu te amo”? Ah, Vicente não esperava que ela dissesse para perceber ou se certificar; tão melhor que calassem essa frase e que somente a proferissem com tamanha sabedoria que viria dum estado de espírito final, arrebatador e mortal. Dir-se-iam o “eu te amo” antes do salto, pois se permanecessem vivos depois dessas palavras, adoeceriam terrivelmente: eram duas pessoas distintas, embora suas almas tivessem alguma semelhança e se comunicassem e quisessem se unir; cada um individualmente egoísta e colorido. Não, não há união, nem sequer o matrimônio pode unir duas pessoas – elas fenecem e perdem a cor. Vicente e Vitória eram livres demais: os dois tinham descoberto certa liberdade bastante intensa e peculiar; poderiam se suportar, tolerar, aprender qualquer coisa, mas lutariam sem consciência contra a presença um do outro. O inferno é, realmente, o outro? Como não se sofre com o anseio e a dor do próximo; como não é perturbadora a injustiça, a ignorância, a violência, a falta de... Amor? Mesmo a forma mais sublime de amor traz inquietações e sofrimento.

Parece que ou se ama ou se vive. Dá para amar e viver? Não: viver não é amar, e amar não é viver – acontecem separados. Será que quem ama tem o direito de desejar ficar só de quando em quando? De não falar, ver nem tocar quem ama? Ah, mas isso não quer dizer que a presença do outro seja desagradável, e que se queira encontrar outro amor na distância necessária e passageira: seria apenas alguém que ama e tem a vida para viver, um mundo para descobrir, sozinho. Ora, e por que não descobrir esse mundo juntos? Não é possível: são mundos particulares que se quer encontrar. Então partem os dois na caminhada; o amor é um laço sutil e invisível, e eles estão livres para a descoberta de seus próprios mundos. Também, o mundo de um pode não ser interessante para o outro; mas sobre isso eles conversam depois, e conseguem compreensão – a mais harmoniosa e altruísta forma de individualismo. Muitos não conseguem entender: traem e matam seus amados. Cada um vive e ama, e amam essa disciplinada e fundamental independência.

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