Um sopro

"Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto - e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente." (Clarice Lispector)

Almas com almas

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Conversando com a Natureza?

Naquela efervescência da natureza na mulher, imiscuída de escuro e de árvores, uma voz despontou:

_ Olá, minha filha, sou eu, sua Mãe.

­_ O quê? Eu não tenho mãe.

_ Justamente por isso é que sou Mãe de todos vocês.

_ Você é a Natureza falando?

_ Não sei, e tomara que eu não saiba. Sou Mãe, e basta.

_ Ora, mas o mundo não nasceu – ele foi criado. Criar qualquer um cria: homem, criança, joão-de-barro.

_ Eu sei disso. Sou Mãe porque cuido. Sempre que uma mulher foi cuidadosa com as coisas. Depois da Criação, me chamaram para cuidar do Universo.

_ E você é mãe biológica ou Mãe Gentil?

_ Não seja piadista, menina.

_ É que está uma noite tão bonita e agradável que não quero sermões.

_ Mas não vim dizer sermão. Vim trazer novidades. Suponha que eu seja como a tal voz vinda da sarça ardente.

_ Ah, era só o que me faltava. Sei bem de onde você vem, devo estar delirando, devo ter sido arrebatada por algum espírito que vaga por essas florestas, coisas do folclore, e, por mais que eu diga não ao folclore, meu inconsciente gosta de zombar comigo.

_ Que grosseria!

_ Pois eu prefiro ficar em silêncio. Se você é mãe para sempre linda, e para sempre azul nos olhos, mãe de amor imenso, céu e mar, e pôr-do-sol na praia, porque olhar o mar de tarde e respirar sal calmo é estar do seu lado, respirando vida, respirando meu lar, de onde vim, do seu silêncio interno e mágico e quente; se é tudo isso, não me diga nada, fique somente aí onde está.

_ Eu sou um silêncio que fala.

_ Então me diga se sou tão humana.

_ Você é humana assim como eu sou silêncio. É o nosso pacto com a vida. Todas as maravilhas e todos os infortúnios que nos acontecem são acidentes porque transitamos nas mesmas direções. O mundo é uma bela tragédia! E eu só faço dirigir esses espetáculos para que não passem mesmo de uma representação artística, senão o trágico perde a graça, e todos podem morrer.

_ Você é mãe dos tolos.

_ E como sou! Sou Mãe de quem aprende que a tolice move todas as coisas.

_ Oh, mãezinha! Será que minha vida inteira passará nesses termos de escritor barroco?

_ É a Natureza que escreve e lê, minha filha – nossas imagens mais duradouras só podem ser encontradas na literatura.

Depois de uma pausa para reflexão, como num escritório se faz uma pausa para o café, a voz prosseguiu:

­_ Sem mais delongas: sabe quem eu sou de verdade? Eu sou aquele escuro que você um dia buscou numa maçã repartida.

_ Pois eu pensava que o escuro daquela maçã me havia escapado para sempre.

_ Acontece que um ou outro ser humano fica sabendo de um escuro intocável. Saia desta encosta glorificada, Virgínia – só Shakespeare fez semelhante revelação aos seus personagens. Nem aquela que pariu o Cristo jamais ouviu o que te digo hoje, em palavras e em gestos.

Diante da voz, Virgínia chorou e sangrou entre as pernas, arrefecendo-se diante dela. Oh, mas isto é muito funesto! Tal voz só podia ser algum demônio! O espírito daquele pintor morto? “Levanta-te. Tu não precisas saber desse escuro – é uma luz perdida, uma luz fugida, uma luz rebelde. Ela não te pertence, e, sim, tu tens razão, tal escuro que procuraste um dia nos escapa eternamente, esta voz que te diz onde achá-lo, pois se é algo que domina a tua linguagem e o teu entendimento, então só pode ser uma balela. Vamos, levanta-te, e anda daqui! Nada que fala através do entendimento humano faz parte do sagrado!”

(O Homem, a Mulher e o Gato no Escuro)

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