Um sopro

"Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto - e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente." (Clarice Lispector)

Almas com almas

terça-feira, 6 de julho de 2010

A enfermidade salvadora III

Do que a enfermidade me salvou? Da eterna repetição. Eu era um rato de biblioteca e era também cativo da moral. Ler muito e viver cheio de pudor eram a minha desgraça: isso é ser saudável. É saudável que se infle o cérebro de conhecimentos variados e também que se evite o mal com excesso de bondade. Eu esbanjava saúde, mas era terrivelmente infeliz. Renunciado. Resignado. Gordo. Indolente. Tagarela. A enfermidade me fez dizer sim ao que era proibido e estranho, e nessa permissão a liberdade se me apareceu resplandecente. Eu não estava livre apenas para decidir por conta própria, mas livre de mim mesmo, da vida, das verdades que os homens contam. Estar enfermo me proporcionou um passeio pelo lado negro e contrário das coisas, e ali vi inferno tão belo. Não era um inferno de almas atormentadas, correntes ou lagos de fogo: era um inferno pessoal, era o meu canto mais profundo e abandonado, coberto por heras geladas, líquen e microrganismos. Eu vi meu eu recôndito e precioso. A minha essência.

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