Um sopro

"Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto - e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente." (Clarice Lispector)

Almas com almas

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Deus dorme?

Era certo que entre as conversas de Vitória e Vicente um silêncio os abraçava, de vez em quando. Abraçava, e eles podiam sentir o próprio calor do sangue, ou o fervoroso tropel de pensamentos indômitos. Ainda mais quando estavam lá, no topo da encosta. Fazia um silêncio diferente; pois nada cessava de todo: o vento, os bichos noturnos e, absolutamente, o mar. Talvez um silêncio perturbador, porque era como se os dois voltassem a uma natureza muito antiga de suas espécies, e trouxessem à memória doce melancolia e saudade; sons mais intensos e provocantes do que os evocados pela consciência remota e primordial de um cérebro que se forma no ventre de uma mãe – eles eram transportados para o ventre primeiro da existência. A lua se fazia notável em alguns dias; um olho arregalado. Um olho.

_ Parece-me que há uma contradição.

Vitória regressou ao presente:

_ Deus não dorme à noite; nem na noite temos a liberdade de que pensamos gozar. Vê a lua? É um olho de Deus; e se pode fitá-lo. Constrange, pois é um olhar muito silencioso. Dá a impressão de que é um olhar de sonâmbulo; mas é ardiloso com sua monótona luz. O sol: ele queima. Tão sincero e judicioso olhar, que logo pune. Seríamos punidos constantemente, não fosse pela noite, o homem, eternamente um tolo pecador.

_ Pois que castigo brando nos inflige a lua?

_ Brando? Oh, creio que é o castigo mais doloroso! Sendo tão impassível, a lua, então punimo-nos. Nós mesmos nos punimos à noite; é a terrível consciência que percorre cada canto de nossas vidas, e nos acusa.

_ Não dou ouvidos à minha consciência, não à noite.

_ Já tentei fazer isso, Vitória; pode ser que a ignoremos – mas ela acha seu meio de manifestação, e não percebemos. Fumo mais nas noites. Bebo também. Faço coisas que me destroem aos poucos e, no entanto, elas me parecem prazerosas.

Vitória pensou que Vicente podia estar certo; ela logo refletiu sobre sua vida noturna; ah, o prazer que é um engano:

_ Somos enganados por nós mesmos, o tempo todo. Acredito que não há influência alguma que possa ser exercida sobre nós se não o quisermos. Até sobre o pecado podemos estar enganados... Difícil saber.

_ Somos nossos piores inimigos.

Um comentário:

  1. "Somos nossos piores inimigos", algo que eu concordo plenamente. Interessante essa teoria sobre a Lua e a noite.
    Na verdade, eu adoro a Lua, ela completa a noite com seu aspecto sombrio e cativante.

    Abraços! x)

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